Ser USF. Vale a pena continuar.

Nunca na administração pública uma reforma foi tão rapidamente consensual e ganhou o respeito dos cidadãos. Julgo mesmo, que este tem sido o grande obstáculo ao poder político, que evita uma atitude frontal que dificilmente poderia justificar junto do cidadão.

Nunca na administração pública houve um processo com a transparência, o escrutínio em permanente acessibilidade ao cidadão contribuinte como o nosso.

Só não é mais eficaz porque os dados continuam a estar disponíveis com atraso, que julgo injustificado, mas ao que somos alheios.

E tudo foi promovido pelos profissionais e pelas suas lideranças. Notável, não vos parece?

É sentimento geral que a reforma dos Cuidados de Saúde Primários (CSP) se encontra numa das fases mais complexas do seu ciclo de vida. Desinvestimento nas pessoas e em recursos materiais do trabalho e de organização, apesar de negados pelo poder político, são sentidos por todos quanto diariamente têm por missão cuidar da saúde dos Portugueses. Consequência de opções políticas, salvo melhor opinião, inadequadas, como se comprova pela consulta dos indicadores oficiais, entre os quais os económicos, mas também pelos de satisfação dos utentes e dos profissionais, e pela demonstração inequívoca de que os ganhos em saúde e a eficiência econômica estão relacionados com a maior diferenciação organizacional.

A persistência destas condições de contexto gera desânimo, tanto nos que desde as primeiras horas abraçaram esta notável reforma, como nos que a ela foram chegando, causando erosão na forte coesão dos anos iniciais e abalando a resiliência de muitos profissionais.

Assistimos ao seu afastamento na participação ativa no cuidar coletivo deste bem comum que soubemos construir, o que a manter-se, potencia o risco da emergência de um outro paradigma em que os seus atores terão cada vez menos voz na construção de organizações em que a autonomia, a responsabilidade, a transparência e a prestação de contas, entre outros, sejam a energia que alimenta a sua evolução como organizações progressivamente mais eficientes, geradoras de respostas adequadas e atempadas às necessidades dos cidadãos, combatendo a iniquidade para com centenas de milhares de cidadãos (leia-se contribuintes) sem acesso a Médico de Família, ou com acesso limitado, por via de modelos organizacionais pouco plásticos, mais centrados no prestador que no cidadão. E com este rumo perde-se valor. Valor para os cidadãos, mas também para os profissionais, que correm risco de perder uma das mais importantes vertentes desta construção coletiva, a da sua satisfação pessoal por serem voz ativa e responsável do seu próprio desempenho e do das suas equipas.

Ao mesmo tempo assistimos à emergência de um discurso entre os profissionais que julgo contribuir mais para o problema que para a solução.

Aceito que haja equipas que não querem ser USF ou ser modelo B e que é justo que tenham adequadas condições de trabalho e remuneração ajustada ao desempenho, assegurando a equidade no tratamento dos profissionais, mas e sobretudo a equidade na prestação de CSP de qualidade a todos os nossos concidadãos.

Pelo que a sua prioridade terá de ser a de reclamar ao poder político a mudança do seu contexto ao invés de utilizarem outros colegas/equipas como alvo da sua contestação. Estou certo que contarão com o apoio de todos, qualquer que seja o modelo organizacional.

Contudo na origem desta nossa reforma, o objetivo da maioria das equipas seria o de atingir patamares organizacionais em que a prestação de cuidados atingisse standards mais exigentes com a repartição do risco remuneratório entre o prestador e o pagador. E é esse o justo objetivo da maioria das equipas em Modelo A- serem Modelo B.

Pelo que vejo com igual preocupação o discurso de alguns destes profissionais, que vão no mesmo sentido do que atrás expressei. Julgo que tal ocorre, sobretudo, porque as legitimas expectativas de muitas dessas equipas foram cerceadas. E é aqui, julgo, que precisa estar focada a nossa atenção. A responsabilidade pelas quotas ou o congelamento da progressão é exclusivamente política.

Sabemos que há desempenhos que precisam ser reformulados e que não devemos esperar que sejam os outros a vir dizer-nos o que fazer. Temos ferramentas que nos ajudam na autoavaliação e a corrigir rotas, e precisamos consolidar a atitude de o fazer de forma sistemática, sabendo que haverá equipas que precisarão de apoio e supervisão. É nesta assimetria que o poder procura instalar a incerteza e promover a divisão. O paradoxo de um discurso que defende e promove as USF em contraponto com uma prática em sentido oposto, precisa fazer-nos pensar se estamos a optar pela estratégia mais adequada para repor o rumo que pretendemos e que é o do fim das quotas para ser USF A ou B.

Julgo que é urgente mudar atitudes e conciliar discursos. Estou convicto da importância do reforço do poder de influência da nossa associação junto dos decisores, o que se torna difícil se à volta da USF-AN não estiver a maioria dos profissionais, participando ativamente com o seu saber, a sua criatividade e a expressão do seu querer. Contamos com lideranças com níveis de reporte e transparência exemplares, que ativamente procuram desenvolver estratégias que suportem a nossa capacidade de continuar a ser atores da nossa utopia e a condicionar de forma coletiva o rumo do nosso futuro comum.    

 A busca de maior satisfação pessoal passa pela conquista de melhores condições de trabalho, maior reconhecimento profissional pelo compromisso com valores do serviço público, perspetivas de formação e de carreira, pelo equilíbrio entre a vida pessoal e profissional, e não só por melhoria das remunerações, o que se encontra suportado por múltiplos estudos.

Desenganem-se os que julgam que limitar o acesso a modelo B ou a sua extinção não vai por em causa a reforma dos CSP. Foi a afirmação daquele modelo que contribuiu para a qualificação organizacional dos outros, e o atual estado das coisas vai conduzir a que seja cada vez menos apelativo organizar equipas com responsabilidades acrescidas sem a devida compensação.

Pelo que o meu apelo é que promovamos o reforço da coesão e do respeito mútuo dos profissionais dos CSP, independentemente da sua opção organizacional, que em conjunto, sejamos capazes de amplificar a nossa resiliência e com ela oferecer a maior resistência de forma organizada e concertada a manobras que podem levar à desconstrução deste edifício fantástico que queremos defender.

Estou convicto de que agradeceremos todos- profissionais, cidadãos e governos.

O homem de bem exige tudo de si próprio; o homem medíocre espera tudo dos outros. (Confúcio)

José Carlos Marinho

Médico de Família, USF Santa Joana