35 anos para “reformar” os cuidados de saúde primários

A atual “reforma” dos CSP foi gerada entre 1996 e 2005 e impulsionada entre 2006 e 2010. Está ainda a meio caminho e  este “meio” respeita apenas a dois dos seus pilares – o das unidades de saúde familiar (USF) e o das unidades de cuidados na comunidade (UCC). Nos restantes, nem a meio caminho chegou. E já vão 21 anos.

Vejamos:

  • A gestão organizacional não foi descentralizada. Os agrupamentos de centros de saúde (ACeS) têm dimensão e fluxos financeiros correspondentes a médias e a grandes empresas, por critérios europeus. São telecomandados por instâncias burocráticas, distantes, retardadoras, também elas sem grande autonomia;
  • A governação clínica e de saúde é incipiente. Os conselhos clínicos e de saúde não foram levados a sério. Nenhum Governo deu cumprimento ao DL 28/2008, instituindo o reconhecimento retributivo aos membros destes conselhos, previsto na lei;
  • A gestão participada pela comunidade está prevista na lei, através dos conselhos da comunidade e da sua participação nos conselhos executivos dos ACeS, mas está na estaca zero. Porém, a Constituição determina, no Artigo 64.º, que o SNS tenha uma gestão descentralizada e participada;
  • As unidades de saúde pública (USP) atingiram uma atrofia quase agonizante;
  • Competências profissionais indispensáveis em cuidados de saúde primários: saúde oral, psicologia, nutrição, fisioterapia, serviço social, entre outras, só recentemente começaram a receber alguma atenção;

É de destacar, no entanto, a viragem em curso no modelo de contratualização com as unidades funcionais dos ACeS. Esta viragem pode atenuar perversidades instaladas. Oxalá ajude a reorientar a visão das equipas para horizontes de saúde e para a melhoria contínua dos cuidados.

Quanto às USF, para que todos os cidadãos tenham acesso aos cuidados de equipas motivadas e bem organizadas,  serão necessárias, no continente, entre 850 e 870 unidades. Neste momento existem 482 USF e cerca de 380 UCSP. As USF aumentam lentamente. As UCSP decrescem lentamente. Ao ritmo prometido – e não atingido – de 25 novas USF por ano, só em 2030-2032 será atingida a equidade desejada para toda a população. Contando o tempo entre o início dos Projetos Alfa e Grupos RRE (1996-1998) e 2030-2032, dá 35 anos.

Todo o percurso da “reforma” dos CSP, desde 1996, está marcado por constantes embates entre vontades e iniciativas de gente determinada, generosa e solidária e os aparelhos do Estado e da Administração Pública, bloqueadores da transformação inovadora do SNS, e de outras áreas sociais. Felizmente, ocorreram breves mas decisivos avanços, logo travados pela ação ou inação de aparelhos  cada vez mais insuportáveis para os cidadãos e para a sociedade.

Será possível  o “novo impulso” da reforma dos CSP anunciado há dois 2 anos atrás, sem que ocorra alguma reforma do Estado, da Administração Pública e sem que seja criado um novo e diferente estatuto institucional do SNS e um novo modelo para a sua governação?

Será possível que os CSP passem a ser, na prática e não apenas no discurso, uma prioridade política de todo o Governo e de todo o país? Continuo a querer acreditar que sim. Caso contrário, bem podemos contar os 35 anos, pelo menos…

Victor Ramos

Médico de família na Unidade de Saúde Familiar São João do Estoril (ACES de Cascais)

Docente convidado da ENSP/ UNL