Declaração de Aveiro
Para um novo ciclo na transformação dos cuidados de saúde primários em Portugal
1. E o improvável aconteceu.
Descongelou-se à periferia a rigidez das organizações de saúde. Aquelas que impedem uma resposta qualificada às necessidades das pessoas.
A partir do terreno, construiu-se uma nova forma de estar na saúde – autonomia com responsabilidade.
Segundo um estudo recente, o sucesso das “unidades de saúde familiar” (USF) deve-se aos seguintes atributos: gestão participativa, níveis elevados de suporte organizacional e de compromisso, e coesão afetiva.
Existem hoje 419 USF, e há zonas no país onde toda a resposta em saúde familiar é baseada em USF.
Todos os inquéritos até hoje efetuados aos seus utilizadores revelam elevados níveis de satisfação com os cuidados prestados.
Na saúde foi possível romper o cerco da administração pública mais tradicional e hierárquica, e começar a fazer, pelo menos aqui, há já alguns anos, uma reforma do Estado. Um Estado amigo das pessoas.
2. No entanto o resto do país não evoluiu ao mesmo ritmo e da mesma forma incluindo o conjunto dos cuidados de saúde primários e o Serviço Nacional de Saúde.
Isso não foi totalmente inesperado.
Os velhos hábitos – autoridade sem fundamento ou conhecimento, normas incompreensíveis e impossíveis de cumprir, desconfiança do mérito e os prémios às incompetências protegidas – ainda ocupam um vasto território na nossa sociedade.
Há progressos em alguns Agrupamentos de Centros de Saúde (ACeS). Mas muitos deles são demasiado grandes para serem próximos e a principal razão do próprio processo de agrupamento, a descentralização de competências acumuladas nas ARS, está ainda por concretizar 7 anos depois da sua criação. Como explicá-lo?
No decurso dos primeiros 4 meses deste ano, tão só uma nova USF foi instalada, apesar de existirem mais de 50 candidaturas aprovadas para o efeito. E no entanto está bem demostrado que só o aumento do número de USF é suscetível de proporcionar cuidados de saúde de qualidade a mais portugueses. Como alguém argutamente observou, algumas propostas recentes do governo, nesta matéria, mais parecem destinadas a dar mais portugueses aos médicos (sem cuidar das consequências) do que médicos aos portugueses.
Os processos de contratualização – essenciais para que haja autonomia com responsabilidade – têm registado algumas melhorias. Mas continuam ritualizados através de indicadores e metas excessivos e mal fundamentados feitos pouco à medida da realidade que devem influenciar. Por isso não são ainda processos verdadeiramente inteligentes e muito menos colaborativos.
Os sistemas de informação da saúde parece que envelhecem antes de chegarem à idade adulta. E, frequentemente, bruscamente, desistem de existir. No último ano cerca de 30% das USF tiveram falhas de acesso informático mais que 50 vezes.
Talvez por isso tudo, quase 80% dos coordenadores das USF manifestam-se insatisfeitos com a atuação do Ministério da Saúde nos cuidados de saúde primários – em 2009/10 essa percentagem de insatisfação era apenas de 34%.30% das USF tiveram falhas de acesso informático mais que 50 vezes.
3. É inerente ao espirito fundador desta reforma, e a todos aqueles que a têm concretizado no seu dia-a-dia, não assistir passivamente à involução de tudo aquilo que tão laboriosamente construíram. O que está aqui em causa, é demasiadamente importante para a saúde dos portugueses e para o futuro das profissões de saúde, para que deixe de nos preocupar.
4. É imperativo iniciar um novo ciclo na transformação dos cuidados de saúde primários do país.
Olhar com satisfação evidente, e até com algum orgulho, para tudo aquilo que até agora foi possível realizar, não deixa de trazer também grandes inquietações quanto ao futuro.
Inquietações, sérias, fortes, saudáveis.
Somos velhos combatentes da mudança na saúde em Portugal. Transportamos cicatrizes e alguma sabedoria de mil batalhas perdidas e algumas bem ganhas.
Somos jovens profissionais que crescemos já no ambiente exigente mas acolhedor e afetivo das USF. Sabemos que temos que enfrentar, porventura, um mundo mais difícil e hostil do que o dos que nos antecederam. Sabemos também que isso põe visivelmente em causa o nosso futuro.
Até agora, pode dizer-se, que a reforma centrou-se na criação de um novo tipo de organização para os cuidados de saúde primários. Já a temos, com as imperfeições que iremos continuar a superar.
O novo ciclo de mudança que aqui se propõe, centrar-se-á mais nas pessoas do que nas organizações. Parece chegado o tempo em que a noção da centralidade das pessoas, do cidadão, no sistema de saúde, deixará de ser uma expressão de bondade ou estética discursiva, uma forma atraente de marketing político, verdadeiramente destituído de qualquer conteúdo real.
Os 7 pilares das USF, aqui aprofundados e intensamente debatidos, significam exatamente este tipo de transformação:
– Atentar nos determinantes pessoais, sociais e ambientais da saúde, contribuir para a promoção da saúde da comunidade e proporcionar uma resposta personalizada à condição de cada um;
– Assegurar cuidados de saúde de qualidade, formar para promover e apoiar mudanças comportamentais, criar uma nova geração de equipas multiprofissionais;
– Centrar nas pessoas – nos seus trajetos de vida, nos caminhos que percorrem de uma organização para outra, nas relações que fazem, desfazem e refazem – processos assistenciais integrados, serviços capazes de se articular através de sistemas de informação e comunicação utilizando e desafiando a inovação tecnológica hoje á nossa disposição;
– Fazer tudo isso não só para os cidadãos, mas sobretudo com eles, querendo saber se estão satisfeitos, focados como estamos nos resultado desse processo de cuidados e no valor que ele acrescenta ao bem-estar das pessoas.
– Passar das organizações, das diversas incidências de vida, cada uma por si, para a gestão dos trajetos das pessoas, dos caminhos que percorrem à medida que se movem de umas para as outras, é a natureza do desafio que hoje aqui nos convoca.
As USF têm vindo a equipar-se, técnica e intelectualmente, para ter um papel essencial neste projeto de transformação.
Há agora também que equipá-las instrumentalmente para este efeito.
Esta transformação só será possível se acontecer em estreita colaboração com as outras unidades dos ACeS, com hospitais, serviços de cuidados continuados, organizações da comunidade, autarquias locais e os outros atores da saúde.
Ela só é possível no âmbito de um SNS, um SNS melhor.
Sabemos que esta mudança é necessária – existem já no terreno experiências concretas no caminho certo.
Aprenderemos todos como protagoniza-la. Este Encontro soa a tiro de partida.
5. Não teremos os Cuidados de Saúde Primários e o SNS que precisamos se não tivermos país, ou se tivermos o país que não queremos. Convém repetir: Não teremos os Cuidados de Saúde Primários e o SNS que precisamos se não tivermos país, ou se tivermos o país que não queremos.
6. O 7º Encontro Nacional das USF deu mais um passo para aprimorar uma cultura própria da USF-AN, que as exigências desta reforma e a vontade dos seus atores foram configurando no decurso dos últimos 7 anos.
Muitos dos mais de 1.000 profissionais inscritos neste Encontro, participaram em mais de 70 grupos de trabalho – laboratórios de aptidões e sessões temáticas – que tiverem lugar, a par e passo, com um grande número de sessões de análise e reflexão sobre temas da atualidade na saúde.
Esta não é a cultura do queixume cansativo, da crítica fácil ou da exigência só para com os outros. A cultura da Associação Nacional das USF é, agora um pouco ainda mais, a da aprendizagem contínua, do respeito pelos pontos de vista de todos, das propostas e soluções concretas, da confiança em que é possível fazer bem para um futuro mais desejável.
7. Os participantes do Encontro de Aveiro das USF, declaram que assumem o compromisso, perante eles próprios, os seus pares e o país, de fazerem tudo o que estivar ao seu alcance para imaginar, pensar e promover um novo ciclo de transformação dos cuidados de saúde primários em Portugal.
Por isso solicitam à sua Associação que, com base nos trabalhos deste seu 7º Encontro, torne públicas, no decurso do próximo mês, as aspirações, expectativas e propostas concretas capazes de realizar essa transformação.
Para que conste na memória dos presentes,
para que estimule, ajude e comprometa aqueles que decidem,
para que reacenda a esperança em todos aqueles que esperam, precisam, e desejam uma saúde melhor.
Aveiro, 16 de Maio de 2015
P’lo 7º Encontro Nacional das USF
Constantino Sakellarides
Sócio Honorárioda USF-AN