Como disse anteriormente, esta como a anterior, são medidas que têm um significado quando são tomadas a dois meses de umas eleições e com efeitos apenas para um próximo governo. Servem, quanto a mim, para tentar esconder o falhanço na principal promessa do atual Ministro da Saúde: dar um médico de família a cada português. Esta medida tem ainda outro significado, na minha opinião, visa também a destruição da especialidade de medicina geral e familiar (a que enquadra os médicos de família) como outras medidas como a falta de condições de trabalho, o não pagamento dos incentivos, a autorização de reformas precoces, o tratamento que é dado aos recém-especialistas, a asfixia das coordenações dos internatos (que gerem os internatos de medicina geral e familiar), a não constituição de mais USF.
Esta medida pode:
– esvaziar os internatos de medicina geral e familiar (será tarefa mais dificil convencer alguém a fazer 4 anos de formação muito exigente, com múltiplos exames, a ganhar menos do que poderia auferir – os internos ganham líquidos 1300 euros – quando podem, por decreto, ter o mesmo estatuto e ter tempo livre para ganharem mais), ditando o fim da especialidade de facto; e
– o agravamento da situação de falta de médicos de família de qualidade no futuro para níveis de há 30 anos atrás.
A Medicina Geral e Familiar e os Cuidados de Saúde Primários têm sido o bastião mais activo na defesa dos serviços públicos e do SNS contra os movimentos que querem empurrar o sistema de saúde para privatização com as consequências que já conseguimos vislumbrar no inverno passado e como conseguiram fazer nos hospitais. É, pelo menos, a terceira tentativa do PSD neste sentido nos últimos 20 anos – a última em 2003 levou a uma greve de médicos de família que paralisou os centros de saúde durante 3 dias e foi o início do fim do governo PSD de Santana Lopes.
Tem de se dizer que se poderia em 4 anos ter melhorado muito a situação se se tivessem seguido as recomendações da própria Troika ou da OCDE que propunham que se aumentasse o número de USF. Nas USF as equipas conseguem, mantendo a qualidade, ter mais utentes inscritos do que nos modelos tradicionais (estima-se que as USF atualmente existentes, que servem cerca de metade da população, possibilitaram a inscrição de mais 680.000 pessoas em relação ao modelo anterior). E esses utentes ficam não só com um médico de família mas com uma equipa de família com enfermeiro de família e secretário clínico, um esquema de intersubstituição entre os profissionais (para colmatar ausências da equipa onde está inscrito). Se se tivesse melhorado as condições de trabalho nos centros de saúde (os estudos disponíveis indicam faltas de material considerado básico, falhas muito frequentes nos sistemas informáticos, não pagamento dos incentivos alcançados), facilitado a constituição de novas USF (nunca se constituíram tão poucas), tratado de um modo digno os recém-especialistas de medicina geral e familiar (mas são-lhes atribuídos 1900 utentes de rompante assim que acabam a especialidade sem o suporte de uma equipa para os apoiar eficazmente), talvez o cenário hoje fosse outro. Mas o que se assiste é a uma catadupa de reformas precoces (alguns de médicos de família com 55 anos), o empurrar dos recém-especialistas para a emigração e propostas como esta.
Diz-se que estes profissionais vão ter uma formação como tiveram os médicos no início da especialidade nos anos 1980.
Por outro lado, existe capacidade formativa de qualidade para o internato que aumentou a sua produção, há modelos como as USF que comportam com qualidade mais utentes, há esquemas de incentivo para aumento da produção com qualidade, há possibilidade de disponibilizar cuidados de qualidade mesmo sem inscrição em lista se houver profissionais competentes a gerir os centros de saúde e as suas direcções clínicas e houver autonomia para decidir.No entanto, a formação especifica em exercício fez sentido num dado momento histórico, em que a situação era completamente diferente: a população não estava coberta por serviços de saúde na sua grande maioria, a formação do próprio internato era menos exigente do que era agora, existiam os Institutos de Clínica Geral para enquadrarem essa formação (agora esses institutos desapareceram e as coordenações dos internatos de medicina geral e familiar subsistem com uma grande escassez de meios, a formação nas ARS é praticamente inexistente e os médicos que poderiam dar formação estão assoberbados por uma prática muito mais exigente do que nos anos 1980).
O problema é que o governo nada fez de efectivo para mudar esta situação até agora.
Esta situação tem de ser denunciada como um perigo para a Saúde, um retrocesso de 40 anos, uma medida que hipoteca o futuro. O exercício da medicina geral e familiar exige formação específica, é essa formação que faz a diferença e que assegura a qualidade de cuidados que os portugueses merecem. É pela qualidade também que se assegura o futuro.
André Biscaia
Médico de Família
Membro do Núcleo de Relações Internacionais da USF-AN