Fareed Zakaria, um reputado cientista político, escritor e jornalista norte-americano, escreveu em tempos na revista Newsweek que “aquilo que temos hoje em dia não é falta de evidência, mas falta de confiança”. Esta frase aparentemente simples pode ser encontrada, não por acaso, no cabeçalho de um extenso relatório da OMS[i] sobre como fortalecer os sistemas de saúde através do conhecimento. Apesar da ideia parecer consensual e, talvez por isso, de não servir de combustível para discussões acesas, a verdade é que o uso refletido e sistematizado de conhecimento válido para sustentar as ações que visam equipar os sistemas de saúde de boas soluções, é uma ideia que tem tanto de natural como de infrequente. E isso é quase incompreensível.
Bom, todos sabemos que há muitas formas legítimas de orquestrar mudanças e reformas nos sistemas e serviços de saúde, e que as forças motrizes dessas mudanças podem ter as mais diversas naturezas e orientações (políticas, profissionais e/ou corporativas, técnicas, científicas ou sociais). Isso dependerá sobretudo de três aspetos: de onde estamos (que país e que contexto socio-político temos à frente), de onde partimos (em que ponto está o sistema de saúde e os seus componentes antes de mudarmos) e onde queremos chegar (afinal, que mudanças desejamos operar e que metas almejamos atingir). Mas independentemente de como alcançamos estas coordenadas, todos concordaremos que mais conhecimento, mais resultados de investigação de qualidade, mais debate e maior aproveitamento do capital intelectual e humano – esse ativo intangível tão classicamente vulgarizado pela administração pública – nos levarão certamente a percorrer os caminhos de forma mais segura.
Mas como fazer quando a evidência não abunda?
Voltemos à frase de Zakaria, o ponto de partida deste texto. A reforma dos cuidados de saúde primários de 2005, o tal acontecimento extraordinário[ii], veio mostrar-nos de forma muito clara como os conceitos de Zakaria, de evidência e de confiança, podem convergir em vez de competir. Naquela altura, quando se preparava o terreno para mudanças sobre cujos resultados pouco se podia prever dada a sua natureza inovadora e sem antecedentes no nosso país, foi o granjear de um grande capital de confiança que se foi mantendo até hoje, embora nem sempre nas mesmas doses, que funcionou como a argamassa que manteve o processo coeso, ou pelo menos o mais coeso possível. Não tínhamos a evidência, mas tivemos a confiança. E avançou-se. Hoje estamos certos de que não foi uma confiança vã, pese embora as recomendações, na altura, não apenas para uma grande prudência na antecipação dos resultados (que hoje reconhecemos como essenciais pelo salto qualitativo que traduziram), como sobretudo para um alerta da importância da aprendizagem coletiva. E o próprio modelo de governança da reforma esquematizado na altura incluía, também não por mero acaso, uma dimensão de fundo orientada para a informação, conhecimento e inovação, a par de um sistema de aprendizagem que considerava precisamente a formação (aprendizagem), a acreditação (qualidade) e a investigação (conhecimento).
Na linguagem da reforma, estava lá tudo. Nos anos que se seguiram, uma das componentes que talvez menos avançou terá sido precisamente a que se associava à construção de um dispositivo de análise e direção estratégica. Bom, pelo menos de forma explícita ou formal, já que não é abusivo considerar que a criação e o crescimento da USF-AN, a partir de 2008, se constituiu como um verdadeiro laboratório de pensamento e ação estratégica à escala nacional e, mais tarde, internacional, de disseminação das mais variadas iniciativas, de comunicação interpares, de partilha, de representação, de criação de valor e de construção de soluções que, a partir das bases, vieram ajudar a consolidar fortemente uma reforma que marcou o país. Não estava no guião, pelo menos não naquele, mas foi provavelmente a única maneira que os que orientaram as mudanças encontraram para garantir que a energia mobilizadora então gerada não se ia perdendo pelos corredores dos ministérios, nem se diluindo na espuma dos dias, nem ainda que fosse ficando refém dos rígidos formatos dos despachos legislativos, que na esmagadora maioria das vezes – demasiadas vezes – se constituem como ineficazes instrumentos de gestão da mudança organizacional. Mais tarde, ferramentas como o BI-USF e mais recentemente, o BI-CSP, vieram operacionalizar e tornar acessível a todos (todos mesmo, cidadãos incluídos) aquilo que qualquer administração minimamente preocupada com o desenvolvimento deveria conseguir satisfazer, mas não satisfez. Mais uma vez, mérito dos mesmos – os do costume.
Ao mesmo tempo que se continuava a alimentar a confiança, procurava-se a evidência. Mas temo que tenhamos chegado a uma fase em que esse esforço, que é muito, já não seja suficiente para contrariar as marés que por vezes se deslocam em sentido contrário ao do interesse público. Precisamos de recuar àqueles tempos e encontrar a argamassa que nos permita construir mais uma solução. Desta vez uma que traduza formal e inequivocamente a nossa intenção de fomentar uma cultura de conhecimento explícito e não apenas tácito, que seja capaz de extravasar o setor da saúde, que aproxime outros segmentos da sociedade e que atinja a esfera política. Que crie mais recomendações, mais vezes e mais fundamentadas.
Temos os instrumentos, as pessoas e o contexto para o fazer. Falta-nos apenas edificar uma iniciativa que, de uma vez por todas, afirme este acontecimento extraordinário como um verdadeiro laboratório vivo para o sistema ciência. Que congregue profissionais, investigadores, estrategas, políticos e cidadãos em torno de mais investigação e mais conhecimento para sistemas de saúde mais fortes, para cuidados de saúde primários (ainda) mais plenos.
Tiago Vieira Pinto
Enfermeiro de família | USF Serpa Pinto
[i] WHO (2004). World report on knowledge for better health: strengthening health systems. Geneve.
[ii] Grupo Consultivo Para a Reforma dos Cuidados de Saúde Primários (2009). Acontecimento Extraordinário: SNS proximidade com qualidade – relatório do Grupo Consultivo Para a Reforma dos Cuidados de Saúde Primários. Lisboa.