Todos os anos, nesta altura, assistimos a um cenário preocupante e alvo de notícias na comunicação social sobre o aumento dos tempos de espera nos Serviços de Urgência (SU), doentes internados nos corredores, bombeiros retidos por falta de macas e a uma clara sobrelotação destes serviços. Este é, de facto, um dos maiores problemas do Serviço Nacional de Saúde que parece não ter um fim à vista.
Os cuidados de saúde primários (CSP) são frequentemente apontados como uma das causas para esta falta de resposta dos serviços de urgência às necessidades da população. A verdade, é que apesar da reforma dos CSP, que arrancou em 2005, ainda não estar concluída, assistimos hoje a um claro desinvestimento naquela que deveria ser a porta de entrada no sistema de saúde e, como tal, a resposta para muitos dos problemas sentidos nos SU de todo o país. Em 2017, o número de USF que abriu foi o mais baixo de sempre, com apenas o surgimento de 15 novas unidades. Nesse ano, nenhuma USF modelo A passou a modelo B, apesar do interesse demonstrado pelos ACES. A reforma dos cuidados de saúde primários, nomeadamente com a criação das Unidades de Saúde Familiares (USF) e do esforço para atribuir a todos os utentes um médico de família, foi um dos passos para a reestruturação da prestação de cuidados de saúde, mas está hoje em risco. Há quem coloque a dúvida sobre a solução apresentada para o problema. Será que a reforma dos CSP contribui efetivamente para a redução da pressão das urgências hospitalares e a continuação da pressão é sinal de que a reforma não foi tão longe quanto deveria? Ou será o impacto dos CSP nas urgências hospitalares apenas mais um mito?
No âmbito da minha dissertação de mestrado em Gestão e Economia de Serviços de Saúde, da Faculdade de Economia do Porto, realizei um estudo que permitiu concluir que o tipo de unidade funcional influencia a utilização adequada dos Serviços de Urgência. Os utentes inscritos em USF têm uma utilização mais adequada dos SU do que os utentes inscritos em UCSP, sendo que esta utilização é ainda mais adequada nos utentes inscritos em USF modelo B.
Se este resultado corresponder a um padrão replicável à escala nacional, então a conclusão da reforma dos CSP, com a transformação de todas as unidades funcionais em USF modelo B, permitiria uma redução de 123.367 no número de episódios de urgência que corresponderia uma poupança anual de 9 milhões de euros (assumindo um custo médio de 73 euros por episódio de urgência).
Quer isto dizer que apesar das USF modelo B serem mais dispendiosas para o SNS, ao possibilitarem um melhor seguimento do doente possibilitam uma redução significativa da utilização inadequada do SU, sendo possível reduzir a sobrelotação destes serviços e os elevados custos associados, bem como obter ganhos em saúde.
Através deste estudo, concluiu-se ainda que os utentes inscritos em UCSP recorrem mais ao Serviço de Urgência, provavelmente por não terem acesso a outro tipo de cuidados de saúde. Por fim, observamos que apesar dos utentes inscritos em UCSP recorrerem mais ao SU e de forma inadequada, quando comparado com as USF, a verdade é que os casos muito graves e graves são mais significativos nestes doentes. Considera-se que tal pode estar relacionado com o facto de estes doentes terem dificuldade de acesso a consultas e contacto regular com o médico de família, levando a um agravamento do estado de saúde. Já os utentes das USF, especialmente modelo B, terão um maior seguimento e, como tal, uma maior monitorização do seu estado de saúde.
Importará assim investir neste tipo de unidades funcionais que, apesar de mais dispendiosas, podem, efetivamente, reduzir o número de episódios de urgência, entre outros ganhos em saúde potenciais.
Joana Vales
Gestora Intermédia do Departamento de Urgência, Emergência e Cuidados Intensivos
Centro Hospitalar do Tâmega e Sousa, EPE
***Conheça a Dissertação de Mestrado em Gestão e Economia de Serviços de Saúde realizada pela autora