A Vacinação da Gripe 2024/2025 em Portugal – Repetir erros ou fazer melhor?

COMUNICADO

21.agosto.2024

Tendo em conta a forma como decorreu o processo de vacinação contra a gripe 2023/2024 em Portugal, a USF-AN pretende, uma vez mais, abordar várias questões relevantes por forma a se evitarem os erros cometidos e que afetaram a resposta e participação dos Cuidados de Saúde Primários do SNS (USF – Unidades de Saúde Familiar, UCSP – Unidades de Cuidados de Saúde Personalizados, UCC  – Unidades de Cuidados na Comunidade e USP – Unidades de Saúde Pública), na campanha da vacinação sazonal 2023/2024, contra a Gripe e a Covid-19.

Identificação dos Problemas 

Com o processo de vacinação contra a gripe e a Covid-19 centralizado nas farmácias comunitárias observaram-se vários problemas especialmente a nível logístico e financeiro.
Como podemos observar pelos dados retirados do Bilhete de Identidade dos Cuidados de Saúde Primários (BI-CSP), dos Serviços Partilhados do Ministério da Saúde (SPMS), com a transferência de grande parte do processo vacinal para as farmácias comunitárias o número de doses administradas pelos Centros de Saúde baixou drasticamente quando comparado com anos anteriores, de 1.967.783 doses em 2022 para 622.933 doses em 2023, não por falta de disponibilidade dos Centros de Saúde (CS) em vacinar, mas sim por falta de stock de vacinas, que impediram os CS de vacinar os seus utentes, em tempo útil, tendo em conta as imensas solicitações dos mesmos para serem vacinados nas suas unidades de saúde. Houve um desvio das vacinas dos centros de saúde para as farmácias e não o publicitado aumento de postos de vacinação.
Veja-se, conforme comprova o gráfico 1, que o processo de vacinação quando foi exclusivo dos Centros de Saúde foi sempre mais ágil e com maior número de inoculações.

Gráfico 1 – Quantidade de Vacinas administradas por ARS – Centros de Saúde, no total do ano, BI-CSP, SPMS, de 2020 a 2023

Nos anos de 2021 e 2022, entre setembro e dezembro (período em que verdadeiramente interessa ter altas taxas de vacinação e não em fevereiro ou março, quando já está a terminar a época gripal), os Centros de Saúde tinham administrado 1.878.276 e 1.967.783 doses de vacina da gripe respetivamente (Quadro 1), ultrapassando largamente o valor atingido pelas farmácias comunitárias de 1.482.667, em 2023, para os mesmos meses (Quadro 2).
No final do ano de 2023, a propósito dos dados da mortalidade divulgados no site do Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO), a Associação de Médicos de Saúde Pública admitiram que o frio e as infeções respiratórias podiam ter tido um papel importante no aumento da mortalidade registado na última semana de dezembro, mas também chamaram a atenção para a baixa cobertura vacinal da gripe.

Quadro 1 – Quantidade de vacinas da gripe (GRIPE SNS) administradas nos Centros de Saúde, nos meses de setembro a dezembro dos anos 2021, 2022, 2023, BI-CSP, SPMS

Quadro 2 – Quantidade de vacinas da gripe (GRIPE SNS) administradas nas Farmácias Comunitárias, nos meses de setembro a dezembro dos anos 2021, 2022, 2023. BI-CSP, SPMS

Se nos focarmos no indicador “Proporção de utentes com vacina gratuita pelo SNS”, vacinados por região (BI-CSP, SPMS), concluímos que, em 2023, a proporção de utentes vacinados foi francamente menor em todas as regiões do país. Neste sentido, o argumento de que a rede de farmácias melhorou o acesso garantindo a cobertura de partes do território, que, de outra forma, seriam excluídas, durante o período crítico de vacinação não encontra sustentação, conforme comprovam os dados que se seguem.

Importa voltar a salientar, que nunca houve um pico de casos de gripe nas UCI – Unidades de Cuidados Intensivos tão acentuado como na época gripal de 2023/2024, conforme apresentado no Boletim de Vigilância Epidemiológica da Gripe e outros Vírus Respiratórios, época 2023/2024 (semana 23). Por sua vez, nunca a comparação com a época imediatamente anterior foi tão abissal. O problema dos picos de casos é um problema, igualmente grave, mas diferente do número total de casos. Um pico pode levar à rutura da capacidade de resposta, num dado momento, de recursos, como as UCI. Portanto, a estratégia de centralizar a vacinação nas farmácias na época gripal 23/24, fica associada ao aumento do número de casos graves de gripe (que necessitaram de internamento em UCI), mais do dobro e a um pico de casos (o maior dos últimos 12 anos).

Para além do atraso na cobertura vacinal contra a gripe a nível de todas as regiões do país, importa ainda identificar outros problemas que decorreram da forma como o processo de vacinação sazonal contra a gripe em Portugal 2023-2024 foi implementado:

1. Desvio de Verbas do SNS para o Sector Privado – Farmácias Comunitárias: Houve um desvio significativo de verbas do Serviço Nacional de Saúde (SNS) para o setor privado – farmácias comunitárias. O custo da vacinação nas farmácias comunitárias foi de 2,5 euros por vacina ao Estado. O montante total gasto poderia ter sido investido de maneira mais eficiente no SNS, suprindo as suas carências.
Exige-se um estudo, por entidades credíveis e independentes do impacto económico nas contas públicas do processo de vacinação da gripe 2023-2024 nas farmácias comunitárias, considerando os custos associados à compra das vacinas, logística, remuneração das farmácias e outros custos operacionais. Importa ter acesso a dados específicos sobre o custo total do programa de vacinação.
Este desvio de verbas até pode ser maior no futuro já que a Associação de Farmácias de Portugal (AFP) já veio alertar “que, para manter o interesse e a motivação das cerca de 2500 farmácias participantes na Campanha Sazonal de Vacinação e garantir a sua colaboração futura em outras iniciativas de Saúde Pública, bem como para poder aumentar este número, potenciando a adesão da população, anuncia-se urgente repensar a compensação financeira atribuída às farmácias”. Ou seja, primeiro desestrutura-se o que funcionava bem no SNS (sempre fomos um dos melhores países do mundo na vacinação contra a gripe) e depois começa-se a exigir mais compensações. É este o caminho da destruição do SNS. 

2. Escassez de Vacinas nos Centros de Saúde: as vacinas da Gripe foram desviadas para as farmácias comunitárias, resultando na falta de doses disponíveis nos centros de saúde. Isto impossibilitou que muitos centros de saúde, totalmente preparados, vacinassem a população em tempo útil.

3. Oportunidade Perdida para Investimento no SNS: os recursos financeiros desviados para as farmácias, o que se repetiria todos os anos, poderiam ter sido utilizados para contratar os 639 enfermeiros que faltam no SNS  e pagar-lhes o vencimento anual, melhorando significativamente os cuidados prestados. Investir esses recursos financeiros nos centros de saúde poderia ter melhorado significativamente a qualidade dos cuidados de saúde primários, proporcionando não apenas vacinação, mas também outros serviços essenciais.

4. Perda de Oportunidades para Estratégias Preventivas: A vacinação nos centros de saúde também é usada para implementar estratégias preventivas e de promoção da saúde, assim como, o acompanhamento das pessoas com doenças crónicas. Com a vacinação transferida para as farmácias, essas oportunidades ficaram francamente reduzidas.

5. Desperdício de Recursos Humanos: os Enfermeiros de Família e outros profissionais de saúde nos centros de saúde ficaram subutilizados em termos de vacinação, um cuidado para o qual estão devidamente preparados, sendo efetivamente os profissionais de referência para qualquer processo de vacinação.

6. Diminuição da Eficiência do Sistema de Saúde/sobrecarga nos serviços: A fragmentação do processo de vacinação ficou associada a mais casos de gripe complicada com necessidade de internamento em unidades de cuidados intensivos e sobrecarga desnecessária dos serviços.

7. Impacto Negativo na Confiança dos Pacientes: A mudança no local de vacinação gerou confusão e desconfiança entre os utentes sobre onde e como receber a vacina, potencialmente resultando numa menor adesão à vacinação.

 

Benefícios do processo de vacinação sazonal 2024-2025 centrado nos Centros de Saúde 

O foco da vacinação contra a gripe 2024-2025 nos centros de saúde em Portugal trará uma série de benefícios a considerar:

1. Acesso Uniforme e Equitativo 
Cobertura Abrangente: os centros de saúde garantem que todos os grupos da população, especialmente os mais vulneráveis, tenham acesso equitativo às vacinas.
Monitorização e Controlo: facilita a monitorização e controlo da cobertura vacinal, assegurando que as metas de vacinação sejam atingidas mais cedo em toda a população.

2. Segurança e Qualidade 
Supervisão Médica/Enfermagem: nos centros de saúde, a vacinação é supervisionada por profissionais de saúde qualificados que podem lidar com reações adversas imediatas e dar orientações adequadas.
Condições de Armazenamento/Manutenção da Rede de Frio: os centros de saúde estão equipados para garantir que as vacinas sejam armazenadas e manuseadas de acordo com as melhores práticas, preservando a eficácia das doses.

3. Integração de Cuidados 
– Atendimento Integral: nos centros de saúde, os utentes podem aproveitar para realizar outros cuidados preventivos e consultas, promovendo um aumento da acessibilidade.

4. Educação e Sensibilização 
Campanhas Informativas: os centros de saúde podem realizar campanhas educativas mais eficazes e personalizadas, promovendo a vacinação e esclarecendo dúvidas da população.
Confiança na sua Equipa de Saúde Familiar: A confiança dos utentes na sua equipa de saúde familiar é decisiva para ultrapassar o fenómeno da hesitação vacinal.

Consideramos que a transferência do processo de vacinação sazonal da gripe para as farmácias comunitárias teve um impacto negativo considerável tanto no funcionamento dos centros de saúde quanto no acesso dos cidadãos aos cuidados de saúde. Essa mudança resultou numa distribuição ineficiente de recursos, aumento de desigualdades no acesso à vacinação, e perda de oportunidades para cuidados de saúde mais integrados e preventivos. É crucial que a estratégia para 2024/2025 garanta uma utilização mais eficaz dos recursos e uma melhor prestação de cuidados de saúde à população.

A USF-AN defende que é crucial que no “Plano de Inverno para o SNS”, referido pelo atual Diretor Executivo do SNS, Dr. António Gandra d’Almeida, no Jornal Expresso, de 15 de agosto de 2024, esteja prevista uma nova estratégia de vacinação contra a gripe. Consideramos que centralizar este processo nos centros de saúde garantirá uma utilização mais eficiente dos recursos do SNS e melhorará a qualidade dos cuidados prestados aos utentes, sem gastos financeiros acrescidos para o Estado. Acreditamos que esta abordagem é a correta e fundamental para assegurar um sistema de saúde mais sustentável e eficaz, beneficiando toda a população. É crucial que a Direção Executiva consiga dar resposta à capacidade de administração de vacinas no âmbito da campanha sazonal dos centros de saúde, isto é que os Centros de Saúde tenham vacinas disponíveis em tempo útil por forma a poderem assumir esta responsabilidade, cabendo a cada equipa de saúde familiar a convocatória e agendamento de todo o processo vacinal, promovendo o acesso fácil e eficiente à vacinação.

A Direção

*Comunicado em pdf