“USF” C não são Unidades de Saúde Familiar

COMUNICADO

31.outubro.2024

O Ministério da Saúde tinha prometido discutir com a USF-AN o diploma das USF C, mas não o fez.

Assim, efetuou a revisão do Decreto de Lei que regula as USF e o resultado não é bom.

Ao ler o Diploma, fica patente que uma “USF” C não é uma USF. O que o Diploma faz é extirpar tudo o que é inovador e diferenciador de uma USF e chama-lhe “USF” C. Do diploma das USF só sobram os capítulos I e II, capítulos genéricos – “Disposições gerais” e “Constituição, dimensão e organização das unidades de saúde familiar” (mesmo aqui na parte da dimensão das listas retira o que distingue uma USF); de qualquer modo, aguarda-se, com curiosidade, para se ver como vai ser garantido o princípio da gestão participativa.

Os capítulos III, IV, V, VI, VII E VIII passam a aplicar-se apenas às USF B, ou seja, áreas como “Estrutura orgânica das unidades de saúde familiar”, “Extinção das unidades de saúde familiar e alterações na equipa multiprofissional”, “Regime de prestação de trabalho da equipa multiprofissional” ou “Regime de carreiras, suplementos e incentivos” aplicam-se só às B. De USF, nas “USF” C fica nada.

Com a atual clarificação do que são as “USF” C e o modelo que se quer implementar, é inevitável concluir que não são USF. Porque para isso, estas têm de ter autonomia organizativa, técnica e funcional, com contratualização de objetivos e recursos para os atingir, com remuneração sensível à carga e qualidade do trabalho, bem como uma gestão participativa assegurada legal e claramente, havendo eleição do coordenador e do conselho técnico pela equipa, sendo as decisões mais importantes tomadas em conselho geral da equipa (um profissional, das várias profissões, um voto secreto).

Como não se cumprem estes pressupostos, não são USF e só está a haver uma utilização abusiva do bom nome das USF para outros fins.

Também não se conhecem os estudos que dizem que esta solução possa ser melhor ou menos onerosa do que as USF B.

Já em relação às USF B, há evidência forte que consegue providenciar os cuidados que a população necessita e melhorar os indicadores de saúde de Portugal.

Não havendo uma remuneração associada à qualidade e carga de trabalho nas “USF” C como acontece nas USF B, como vai ser a remuneração destes profissionais?  Vão ganhar o mesmo (ou mais?) que os profissionais das USF B sem terem de cumprir os mesmos padrões de qualidade? e o Estado e os contribuintes a pagar? como vai ser a prestação de contas destas “USF” C? Que tipo de contrato será oferecido a estes profissionais? Público? Privado?

Pelo facto de ser possível o recurso aos recém especialistas para colmatar estas vagas, e constatando a estagnação da negociação das carreiras médicas com os sindicatos e o desinvestimento nos recursos humanos por parte da tutela, tememos a fuga destes profissionais para estas novas unidades.

Paralelamente, continua-se a falhar no recrutamento de médicos de família para o SNS – nunca foram recrutados tão poucos. Para tal contribuíram concursos mal desenhados para esse recrutamento e avisos do novo modelo C em alturas de decisão dos eventuais novos médicos de família do SNS.

Desconhecemos também qual a proporção de Médicos de Família, Enfermeiros de Família e Secretários Clínicos que estas unidades vão ter. Mais uma vez, não havendo concursos para a entrada de secretários clínicos e enfermeiros nos CSP e mobilidades dificultadas mesmo em tempos de “integração de percursos” que as ULS anunciam, desconhecemos a forma que o Ministério da Saúde vai utilizar para contratar estes profissionais.

Ainda relativamente aos Médicos de Família, tememos que apesar de vedada a possibilidade de médicos vinculados com o SNS acederem às vagas destas unidades, possam, como habitual em caso de insuficiência de profissionais, recorrer a empresas prestadoras de serviços à tarefa e contornar essa proibição.

Como vai ser feita a avaliação destas entidades prestadoras de cuidados de saúde primários? Terão IDE? Terão ICU? Terão de cumprir indicadores? Ou será como os projetos que estão em campo em várias localizações com o setor social e privado de que só se conhecem avaliações feitas por quantificação das consultas realizadas e dias de trabalho, mais próprias do tempo das cavernas.

Porque não são criadas medidas de incentivo à constituição de USF modelo B nas zonas mais carenciadas? Porque é que o modelo B, que já presta cuidados de saúde a mais de 7,5 milhões de habitantes em Portugal, que tem provas dadas de eficiência e eficácia não é alvo de uma aposta clara por parte do Governo?

Não será a criação destas Unidades, uma medida até de concorrência desleal com as USF modelo B já existentes? E que as vão esvaziar?  O fato destas unidades poderem ser suportadas por entidades privadas, assegura isenção na hora de pedir meios complementares de diagnóstico e terapêutica, consultas de especialidade hospitalar, eventuais cirurgias?

Estas áreas devem estar certamente previstas no Portal de Transparência para acautelar tais suspeitas.

Diz-se, no entanto, que “as USF modelo C têm caráter complementar face às USF modelo B e são constituídas para colmatar as necessidades verificadas numa determinada Unidade Local de Saúde (ULS), no âmbito da prestação de cuidados de saúde primários, assegurando a prestação dos mesmos em articulação com as ULS na área de influência em que são constituídas,…” fazendo antever que quando essas necessidades forem colmatadas por USF B, deixem de existir – o aspeto positivo deste diploma.

Na última edição do estudo “O Momento Atual da Reforma dos Cuidados de Saúde Primários em Portugal 2023/2024” publicado a 18 deste mês, avaliou-se a constituição de USF C (do setor social e privado orientado para o lucro), e estas apenas têm a aprovação de 27,8% dos coordenadores das atuais USF B (uma das medidas que tem menos aprovação de todas as que foram analisadas), sendo que 33,9% a desaprovam (os restantes não têm opinião nem para um lado, nem para o outro, o que se compreende porque na altura ainda nada se sabia de concreto), não parecendo uma medida que vá ter adesão por parte dos profissionais de saúde.

Lembramos também que já houve experiências semelhantes no passado para uma carteira de serviços nos cuidados de saúde primários a que chamaram “Convenção em Concorrência” e cujos pagamentos pelo Estado pela sua atividade não tiveram evolução ao longo dos anos. Serve, também, de aviso a quem quiser embarcar nestas “USF” C, que, quiçá, se deviam chamar convenções.

Os problemas vêm de longe, começaram com o governo da TROIKA que impôs as quotas para passagem para USF B, o que as foi asfixiando e afastando os profissionais do SNS. Se os governos desde essa altura tivessem o feito o seu trabalho bem  e corrigido este imposição, tínhamos agora equipas de saúde familiar para toda a população e não estávamos a escrever este comunicado.

A USF-AN vai continuar a ser a Associação Nacional das USF, sem aspas.

 

A Direção

*Comunicado em pdf